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Bauru, 25 de agosto de 2024

Olá, leitores de plantão! Como vocês estão?


Nesta bela tarde de quarta-feira, por conta das minhas pulguinhas atrás da orelha pós-sessão (como sempre), acabei de descobrir que tenho um novo medo… Acho interessante como, quando falamos sobre insights em terapia, quase sempre associamos ao que o terapeuta disse que nos fez chegar a esse ponto de reflexão. E, na maioria das vezes, é assim mesmo que acontece. Só que dessa vez, a descoberta veio de uma direção diferente; dessa vez, partiu do que eu mesma falei para ela.

Com todo esse processo de “estou caminhando para o encerramento de um ciclo e o início de outro”, minha querida ansiedade tem feito visitas constantes, muitas vezes sem ser solicitada, é claro. E, em um desses questionamentos de “como será meu futuro”, comecei a pensar sobre como não me expresso bem e me perguntei muito sobre a diferença entre como escrevo academicamente e como falo academicamente. Garanto a vocês: entre os dois há um abismo enorme.

Entrei na faculdade em 2019, aos 17 anos, recém-saída do ensino médio. Minha escola era muito voltada para o vestibular, então era extremamente conteudista, e acredito que posso contar nos dedos os trabalhos que precisei fazer. Para ser bem honesta, só consigo me lembrar de um único trabalho. Não tinha nenhum conhecimento sobre trabalhos acadêmicos, estrutura, ou forma de linguagem — literalmente, tudo era novo. Não só para mim, mas para muitas pessoas que estavam lá comigo. Porque, de fato, escrever um trabalho acadêmico é difícil pra p*rra! Digo isso com seis anos de experiência, então imaginem para quem estava começando do zero. Mas, enquanto para muitos a escrita acadêmica foi algo que se construiu naturalmente ao longo daquele ano, eu me sentia estagnada. Para mim, não era apenas difícil, ERA EXTREMAMENTE HIPER MEGA ULTRA SUPER difícil. Por mais que eu queira explicar, não consigo dizer exatamente o que acontecia, porque simplesmente não entendia. N A D A. E é justamente por isso que não sei explicar — porque não entendia de jeito nenhum.

Mesmo lendo os artigos que os professores mandavam, os livros e tudo mais, quando eu finalmente sentava a minha linda bunda para fazer um trabalho acadêmico, passava praticamente o final de semana INTEIRO para conseguir escrever uma única página. Esse era o meu nível de dificuldade. Eu estava muito acostumada a escrever ficção, poesia e, principalmente, a escrever em primeira pessoa — era nisso que eu era boa. Desfazer-me desses traços e conseguir escrever academicamente foi extremamente difícil para mim. Era como pedir a um engenheiro super qualificado para realizar uma cirurgia em alguém; simplesmente não rola.

Acho que tudo isso ficou muito mais evidente para mim quando surgiu a oportunidade de escrever um artigo para apresentação de um trabalho acadêmico. Naquela época, dentro da universidade, considerando todo o sistema educacional e as dificuldades que estudantes negros enfrentam para acessar e permanecer nesses lugares havia a “Acolhida Preta”, que tinha o intuito de promover essa adaptação e debates sobre questões raciais, e nada mais era que fazer esse acolhimento dos novos alunos negros, inspirado no conceito de “quilombagem” de Abdias Nascimento, proporcionando um ambiente mais receptivo e acolhedor na universidade. O trabalho foi voltado para esse evento em especifico (que eu participei e amei).

(Acolhida Preta – UFU Ituiutaba, Minas Gerais, 2019)

Lembro até hoje desse dia, que de tantas formas foi um dos mais significativos daquele ano. Fomos para a casa da Jana, estávamos em sete pessoas, incluindo uma veterana que morava com ela. Estávamos escrevendo sobre a Acolhida Preta, um evento que acontecia na faculdade e do qual fizemos parte. Essa vivência me remete muito ao carinho que trocamos, ao apoio mútuo, ao trabalho em equipe e, o melhor de tudo, ao aprendizado.

Naquele momento, eu estava começando a desenvolver a minha consciência racial e aprendi tantas coisas nesse dia… Acho que o mais importante de tudo foi perceber, conforme minha ficha caía sobre as coisas que tinha vivido, que reviver na memória aqueles episódios de racismo e entender que, de fato, eram racismo, foi um processo doloroso — muito doloroso. Mas ter elas ao meu lado me confortou, porque, pela primeira vez, eu sabia que, se falasse sobre isso, seria acolhida; eu finalmente teria alguém que me diria “eu entendo o que você quer dizer”. Finalmente, teria alguém do meu lado quando questionasse alguma situação e poderia confiar que não era “algo da minha cabeça”. E esse sentimento me auxiliou muito para transmitir isso no trabalho, porque eu precisei entender e sentir o aquilombamento, pra eu conseguir escrever sobre ele.

(Apresentação do meu primeiro Trabalho Acadêmico – Urutaí, Goiás, 2019)

Mas, apesar de estarmos ali juntas, trabalhando em equipe, lembro que por um breve momento me peguei pensando: “Por que para elas é tão fácil?” Lembro que abusei da nossa veterana — acho que todas nós não parávamos de fazer perguntas — mas enquanto elas diziam “você pode olhar esse parágrafo?”, eu estava ali, perguntando: “você pode me ajudar a escrever essa frase?”

O mais irônico é que, apesar da frustração constante que eu sentia ao escrever, passando horas e horas me sentindo burra, eu realmente gostava de fazer trabalhos acadêmicos. Digo isso porque, sempre que surgia uma oportunidade para escrever, eu me empolgava demais com a ideia (principalmente durante a pandemia, que facilitou participar de congressos sem precisar estar presencialmente). Eu sempre brincava que fazia isso pelas horas complementares, e talvez essa tenha sido parte da motivação para eu insistir um pouco mais. Mas, olhando para trás e relembrando a forma como eu me sentia, a animação de pesquisar algo sempre esteve ali evidente — eu apenas escolhia ignorar.

Por muito tempo, sempre que eu ia escrever um artigo, sentia a necessidade de ter alguém ao meu lado. Não tiro o mérito disso: foi fundamental para eu começar a entender melhor o processo e me sentir mais segura e confortável para aprender. Escrevendo com alguém, aprendi a estruturar melhor um trabalho, a definir o que eu queria abordar e a pensar em como apresentar essas ideias de forma clara para outras pessoas.

Mas, com o tempo, essa prática acabou se transformando em um pensamento limitante: “Eu nunca vou conseguir escrever um trabalho científico sem ter alguém ao meu lado.” Porque, apesar de continuar fazendo artigos, a dificuldade permanecia. Não era tão grande quanto na primeira vez, mas ainda era bastante desafiador.

Foi então que cheguei na aula de “Métodos e Técnicas de Psicologia”, e, gente, nunca prestei tanta atenção em uma disciplina quanto nessa. Se não me falha a memória, o professor mencionou, já na primeira aula, que o trabalho final poderia servir como base para uma futura Iniciação Científica, já que se tratava de elaborar um pré-projeto de pesquisa (e eu queria muito fazer uma IC, com aquela mesma desculpa de “preciso de horas complementares”, quando confesso hoje que não precisava – já tinha completado as horas extracurriculares). Além de explicar todos os tipos de pesquisa e suas diferenças, ele dividiu as aulas por cada tópico do projeto, dedicando uma semana para a Introdução, outra para os Objetivos, e assim por diante. Esse método foi excelente para que eu finalmente entendesse como elaborar uma pesquisa de verdade, como definir objetivos claros e quais perguntas eu precisava me fazer para alcançar o esperado. Conseguem entender?

Acredito que construir esse pré-projeto em etapas me ajudou a perceber que eu tinha potencial, que eu era capaz. Pela primeira vez, senti que era possível escrever sozinha.

Com esse desenvolvimento, fui criando várias estratégias. Por exemplo, antes de escrever a introdução, faço um esboço de tudo o que quero abordar: “quero falar sobre x, y e z”. Depois, penso se alguém de fora do meio acadêmico entenderia esses conceitos. Se a resposta for não (o que quase sempre é), pergunto a mim mesma: o que preciso explicar para que essa pessoa compreenda meu raciocínio e minha pesquisa? Se eu quero falar sobre autoestima, por exemplo, me pergunto: as pessoas sabem o que é autoestima? O que elas precisam saber sobre isso? Quais conceitos relacionados à autoestima precisam estar claros para entenderem meu projeto? E assim, vou delineando: “Primeiro parágrafo — contextualizar a visão da autoestima no mundo atual; Segundo parágrafo — explicar o que é autoestima; apresentar o que os autores falam sobre autoestima; Terceiro parágrafo — falar dos fatores que prejudicam a autoestima; Quarto parágrafo — trazer exemplos de como a baixa autoestima pode prejudicar o desenvolvimento…”

Depois de fazer esse esboço, a estratégia que mais funcionou para mim foi sentar e simplesmente escrever o que eu queria dizer, sem me preocupar com a linguagem acadêmica logo de cara. Apenas escrevo o que vem à mente. Claro, hoje em dia muito do que escrevo já está formatado para o acadêmico, mas no começo não era assim. Eu não conhecia tantos sinônimos como conheço hoje, então escrever primeiro, para depois “transformar” em um texto acadêmico, me ajudou muito, tanto na escrita quanto no estudo. Essa prática me permitiu fazer associações na minha mente em uma linguagem que eu compreendia. Por muito tempo, escrever acadêmicamente parecia como redigir páginas em uma língua desconhecida, mas aprender a “traduzir” meus pensamentos foi o que me fez progredir e escrever como escrevo hoje.

(Apresentação de Trabalho Congresso de Psicologia – Bauru, São Paulo)

A partir desse ponto, passei de um extremo ao outro. Antes, eu só escrevia ficção; depois, apenas trabalhos acadêmicos. Eu estava, sim, feliz pela progressão na escrita científica, mas, ao mesmo tempo, sentia que estava perdendo uma parte de mim — aquela escritora criativa que vivia no mundo dos pensamentos. Tudo era só fato, objetividade, veracidade.

Essa sensação começou a me causar angústia, e essa angústia se transformou em raiva. Raiva da minha profissão, porque naquele momento (por muitos motivos) eu acreditava que ela estava me fazendo desistir dessa parte escritora da minha vida. Sentia que tinha apenas uma opção: ou a escrita ou a profissão.

Arquivo Pessoal: Livro “Outro Lado da Psi”, 2023

E a partir daquele dia, senti que eu tinha uma escolha a se fazer. Senti que ou eu tinha que abrir mão de tudo que eu estava planejando, desistir de todos os meus sonhos e seguir com a minha carreira profissional ou eu tentava realizar meus sonhos e me tornava uma péssima profissional. Passei semanas chorando, semanas não conseguindo dormir, porque toda vez que fechava os olhos, eu via ela me perguntando o que eu iria escolher. Noites em claro, dias não conseguindo me concentrar porque eu mesma precisava de uma resposta e com certeza não estava pronta para decidir. (…) Só que o que eu não sabia é que essa escolha iria me fazer virar a pior versão de mim. Não no sentido de ser maldosa ou uma pessoa ruim com os outros, mas ser pior comigo mesma. Digo isso com lagrimas nos olhos só de saber que estou revivendo constantemente essa dor. E quando escolhi a profissão, não sabia que no final ao desistir dos sonhos, estava desistindo de mim. De quem eu sou. (…) E essa dor se transformou em ódio. Ódio pela profissão que eu escolhi estar me fazer desistir de tudo que eu acreditei, ódio por ela me fazer desistir de tudo que gostaria de realizar, ódio por ela fazer ser uma pessoa que eu não sou.

Mas, antes de tudo, o que eu mais sentia era medo. Medo de que, se eu continuasse escrevendo, as pessoas usariam aquilo para me descredibilizar na minha profissão. Temia que começassem a questionar minha competência como profissional, apenas por terem lido algo meu. Afinal, como eu poderia refutar isso se, de fato, era um texto escrito por mim? Esse medo me fez acreditar que, para ser uma boa profissional e ser reconhecida por isso, eu teria que abdicar da escritora que há em mim. Só que eu não estava pronta para isso, porque essa escritora fez, faz e sempre fará parte de quem eu sou.

Hoje, na terapia, enquanto falava sobre minha dificuldade em escrever academicamente, percebi que disse uma frase muito espontânea: “Eu tenho medo de que eles não acreditem que fui eu que escrevi.” Refletindo sobre isso, percebi que voltei a um lugar familiar, mas com uma diferença importante: agora, não se trata mais de ser desqualificada como profissional, mas de ser desqualificada como escritora.

Escrever, para mim, é fácil. É a forma que encontro para elaborar o turbilhão de coisas que passam na minha cabeça. Como estou fazendo agora, escrevo para entender meus medos. Quando escrevo, coloco algo de mim em cada palavra, em cada verso. Por mais simples que as palavras possam parecer, sei que cada uma delas carrega um sentimento: às vezes, um sorriso; outras, uma lágrima. E isso se aplica mesmo quando escrevo ficção. Lembro da minha amiga Helena — um dos elogios que mais guardo no coração. Não lembro as palavras exatas, mas ela disse que adorava ler minhas histórias porque eu era uma das poucas escritoras que a fazia realmente sentir o que a personagem sentia. Que minha escrita tinha muita emoção. Isso foi tão significativo para mim porque ela entendeu o que a escrita representa na minha vida.

Pensar que alguém possa duvidar que fui eu quem escreveu algo é como duvidar de mim, do que estou sentindo. É duvidar de que essa parte de mim é real; é duvidar daquela Evelyn que passou horas e horas elaborando estratégias para conseguir escrever uma simples frase.

Porque, de fato, eu sei que não falo bem. Sei que fico nervosa em apresentações e que travo quando um professor me faz uma pergunta, mesmo sabendo a resposta. Falar é rápido, imediato, inesperado. Escrever é calmo, me ajuda a entender minhas ideias e a transmitir o que quero dizer.

Falar é como ter apenas cinco minutos dentro de uma livraria para pegar o máximo de livros que eu puder. Eu até sei onde estão aqueles que já tinha em mente, mas provavelmente me perderia entre as prateleiras, hesitaria diante de títulos que não reconheço, e ficaria nervosa por não saber exatamente o que pegar. Já escrever é como ter tempo de explorar cada corredor com calma, consultando os catálogos e escolhendo, com cuidado, cada livro que preciso. Posso folhear, ler, decidir o que quero ou não.

Ao falar, sou forçada a uma escolha rápida, pela necessidade de parecer preparada, de parecer “profissional o suficiente”, precisar demonstrar que conheço os conceitos e provar que eu sei o que estou dizendo, ali naquele momento. Mas, ao escrever, encontro a liberdade de trabalhar no meu próprio ritmo, de organizar meus pensamentos, de escolher as palavras certas para traduzir o que sinto. É um processo de descoberta, não apenas do que quero dizer, mas também de quem sou. E apesar de saber que não sou a melhor das escritoras que existem, acho que meu maior medo é que alguém tente tirar isso de mim.

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